Conheceram-se no inverno, era meio de agosto. Heitor foi convidado para uma festa de despedida de um dos colegas do trabalho que fora transferido para a Bélgica e partiria em breve. Elisa também foi convidada. Fazia freelas como fotógrafa em festas de conhecidos, o valor da bolsa do Mestrado não cobria totalmente seus gastos. Fez algumas fotos de Heitor e Débora, sua esposa. Entregou um cartão de contato e continuou os registros. Encontrou Heitor alguns minutos depois, enquanto pegavam bebida. Transaram no lavabo do segundo andar. Desde então, nunca pararam de se encontrar. Elisa era treze anos mais nova que Heitor, veio da Capital cursar Mestrado em História do Jornalismo no interior. Retornaria assim que defendesse sua tese. Passaria incólume a olhares lascivos, não fosse um sorriso de dentes grandes e sua altura, um pouco acima da média das demais mulheres. Usava o cabelo preto e curto, à altura do ombro, com a franja quase sempre bagunçada. Poderia ser descrita como espirituosa. Heitor visitava Elisa em seu apartamento com frequência. Religiosamente aos domingos, em que usava a desculpa de participar do grupo de ciclismo para passar o dia todo fora e, às vezes às quartas ou quintas, usando como desculpa reuniões de trabalho.
Era recebido sempre com uma discreta efusividade, subiam as escadas já aos beijos. Nem sempre transavam. Mantinham essa relação secreta há quase três anos, conquanto não eram infelizes. Elisa terminaria em breve o Mestrado, retornaria para a Capital e já havia recebido duas ou três propostas de emprego. Nenhum grande problema financeiro, nenhum relacionamento traumático. Tinha o check-list da felicidade quase que completo. Heitor era profissionalmente realizado e sustentava um casamento feliz. Viajava regularmente com a esposa, tinham boas conversas, o sexo era bom, as coisas eram boas. Aconteceu que, com Elisa, ele tivera os diálogos mais profundos e extensos da sua vida. O sexo mais intenso. Não o mais gostoso, mas com certeza o mais intenso. Conversavam por horas, enquanto Heitor preparava o almoço ou o jantar. Elisa não cozinhava tão bem quanto ele, então detinha-se a arrumar os pratos e lavar a louça enquanto refutava de forma muito embasada qualquer argumento do qual discordasse. Heitor quase sempre cedia, muitas vezes porque ela realmente estava certa e outras, porque queria transar em vez de conversar. Falavam de filmes e dos países que Heitor já conhecia e Elisa ainda não. Comiam frutas enquanto dançavam jazz descalços na sala. Faziam amor na cadeira. No sofá. Em pé, ao lado da porta. Dormiam um sono pesado. Às vezes Elisa não dormia, apenas observava a respiração do cúmplice, densa, sonora. Sentia como se realmente existisse algo no mundo que pudesse considerar valioso, importante. Às vezes quem fazia isso era Heitor. Passava os dedos contornando os traços do rosto dela. Parada assim, como quase nunca ficava, respirando tão densamente, poderia ser um quadro de Vemeer — ele pensava. Nunca diria isso. Ela discordaria. Gostaria de ser comparada com um quadro de Klimt, intenso, vivo.
Heitor não tinha vontade de reclamar de coisas como a burocracia infernal dos bancos e o baixo retorno das aplicações. Essas coisas pareciam muitíssimo insignificantes diante das outras coisas que poderia dizer a ela. A vida nesse curto espaço de tempo mostrava-se grandiloquente. Urgente. Sanguínea. Elisa perguntava o que Heitor pensava de Philip Roth e se, não obtivesse o que gostaria de ouvir como resposta (porque Elisa sabia-se como dona da razão, de um jeito não esnobe — gostaria de dizer), começava a explicar, com seus grandes dentes à mostra, toda a influência e qualidade judia inerente ao romancista. Tinha um sorriso de quem é dona do mundo. Articulava as mãos e mexia seus dedos finos enquanto usava palavras como” corroboram”, ” conseguinte”, “especificidades”. Falava mesmo com a boca cheia de frutas — signo gêmeos —, o que obrigava Heitor a beijá-la no meio de uma frase. Sentavam-se um no colo do outro, deitavam no tapete da sala. Pareciam um grande emaranhado de mãos, pernas, cabelos, teorias existencialistas, discussões exaustivas sobre neoliberalismo, sexo barulhento com tapas e mordidas. Carinho silencioso com o corpos tesos e quentes. Elisa não queria nada. Não desejava que Heitor a amasse de forma diferente do que ele fazia, nem que terminasse o casamento, nem que vivesse com ela. Não desejava conhecer o mundo com ele, mas gostaria de conhecer o mundo sozinha. E voltar para esse lugar em que poderia narrar todas as suas histórias, com a boca cheia de frutas, enquanto ele passaria suas mãos grandes nos seus joelhos e coxas. Esse lugar que era uma pessoa.
Hoje haviam bebido vinho na mesma taça, riram suas risadas feias, falaram palavrões. Discutiram os becos intelectuais das religiões, ficaram em silêncio apreciando a companhia um do outro. Heitor trouxe um bloco de papel com gramatura para as pinturas de Elisa. Ele aprendeu a comprar papéis. Ela aprendeu a cozinhar. Pintaram desenhos feios juntos. Fizeram amor. O domingo precisava acabar, despediram-se. Heitor esqueceu o relógio no braço do sofá, Elisa voltou ao apartamento para buscar. Atravessou a rua mais distraída do que o acaso costuma tolerar.
O som maciço da lataria encontrando o corpo magro de Elisa é que pareceu a ter matado. Heitor, que não sabia pensar nem sentir, lembrou o quanto barulhos altos a incomodavam. Ela morreu de susto com esse barulho — concluiu. O Sol parecia mais forte do que em qualquer outro dia. Estava ajoelhado no asfalto quente mas não sentia sua pele derreter. Era primavera e a rua parecia um tapete gigantesco de flores amarelas. Eram as flores dos ipês. O relógio eletrônico que ficava no cruzamento alternava entre o horário e a temperatura, 31°C. Elisa tinha o cabelo preto e liso grudado no suor e no sangue em sua testa e pescoço. Um tanto de flores sujas e amassadas colavam no sangue em volta do corpo quase sem cor.
Heitor passou os braços por baixo dos ombros dela, tirando as flores de ipê e beijando sua têmpora com cuidado. Ainda com um gosto de ferro na língua, sussurrou no ouvido de Elisa ” Você parece um quadro de Klimt “.